sábado, 3 de julho de 2010




O mais patético foi ver o Luís Fabiano dizendo, sobre a substituição dele. Que o Dunga foi o melhor técnico com quem ele já treinou e que o Dunga sabe o que é melhor pro time. E depois saber que o Júlio César puxou uma espécie de reza pra agradecer o Dunga e coisas assim. Eu não acho que era hora do Luís Fabiano sair atirando nem do Júlio César tacar salada na cara do Jorginho. Não é isso. É só que eu sempre tive um incômodo com essa seleção. E eu sei por onde passa esse incômodo. E eu vou chamar aqui de dupla contaminação, esse incômodo. Primeiro, o discurdo religioso CONTAMINOU a preparação da seleção. No Linha de Passe, o Calazans (acho) usou o termo monastério. A maioria usa quartel e faz analogia militar. Mas eu acredito que a comparação religiosa fica melhor. Claro que monastérios e quartéis são instituições totais. E o Goffman nos ensinou como elas funcionam, daí qualquer uma serviria. Instituição total é aquela que engolfa todos os aspectos da vida do cara. Então as normas dela passam a ser as normas do mundo. A autoridade nela passa a ser a autoridade no mundo. E as coisas que fazem sentido lá, não fazem sentido em nenhum outro lugar. Num hospício, o psiquiatra é Deus. Num convento, a Madre Superiora é Deusa. E assim por diante. O confinamento traz essa coisa da instituição total. E a comissão técnica foi muito hábil quando explorou um aspecto já presente na vida privada de muitos jogadores e misturou com uma determinada postura que eles deviam ter na vida profissional e pública. É da religiosidade que eu tô falando, claro. Então tudo se confundiu e servir à Cristo passou a significar servir ao grupo, ao Dunga e à seleção. Eu imagino, e isso é puro chute, que a coisa devia funcionar meio como grupo de AA. Pra quem já é religioso, potencializa. Quem não é acaba envolvido por aquilo de força superior, acredite em si mesmo, faça sua família ter orgulho de você. Pense nos seus filhos. Em grupo de AA não tem como escapar. Ou você acredita em Deus. Ou em si mesmo. Ou faz pelos seus filhos. É quase impossível que um desses elementos não te toque. E veja. TODOS os jogadores citaram os filhos e a família quando deram entrevistas na zona mista. E o Durkheim nos diz que a religião é a instituição que inventamos para louvar as regras sociais, a sociedade mesmo. E pra ficar mais fácil chamamos de Deus. E dizemos que Deus quer isso e Deus quer aquilo. Mas na verdade é a Sociedade que quer isso ou aquilo. O caso é que a gente sacraliza as normas e daí não conseguimos nos opor. Você deve ter percebido, durante a sua vida, que as pessoas que não tem religião geralmente são as mais "desviantes" socialmente. Não louvar a Deus é não louvar as regras. Pois bem. Eu disse que foi hábil a trama do Dunga por isso. Eu noto que os jogadores faziam referência à seleção e ao grupo como se eles tivessem fazendo esse papel que o Durkheim descobriu. Do sagrado. Então foi fácil porque foi só deslocar a devoção. Vou te dizer. Quem é devoto adora qualquer coisa. Fica só esperando. E eu pensei que o Luís Fabiano fazia meio que a resistência nesse grupo, mas já vinha percebendo que ele tinha arranjado um escape pra devoção. Daí não importa qual porque ela se dá com a mesma intensidade e tal. Essa é a primeira contaminação. A segunda diz respeito a outro aspecto da religiosidade. Mas aí não tem mais a ver com a estratégia de treinamento. Pra mim tá ligada ao modo como o grupo passou a se ver. Talvez fosse até esperado isso, mas eu acho que surgiu na dinâmica. Como a maioria das seitas evangélicas, o grupo do Dunga passou a se perceber como especial. Dono de uma verdade que os outros não conheciam mas que seria revelada. E então nós tivemos o insólito. Porque a abordagem era Seleção X Resto do País. Como se todos nós fossemos inimigos deles e estivéssemos dispostos a arruiná-los ou uma coisa assim. O Dunga chegou a duvidar da crueldade da escravidão porque nós acreditamos nela (crueldade). Ele pegou uma relação desgastada com a imprensa e levou pra todos os níveis. O comportamento do Dunga na fatídica coletiva é de horrorizar. Parecia que ele estava no meio de inimigos, tentando sobreviver e atento a botes e coisas assim. E o grupo todo passou a se sentir escolhido e incompreendido e todo um processo de vitimização nonsense. O Júlio César chegou a falar que esse grupo nunca irá se separar. Impressão minha é que ele sofre mais a separação do que a perda da Copa. Já vimos isso em BBB, não é novidade. Eles se esqueceram de como é a vida fora da seleção. Essa noção de grupo escolhido, pra que eu pasme de vez, foi encorpada por parte da esquerdinha brasileira. Você deve notar que os esquerdinhas também se vêem assim. Como detentores da verdade que os ignóbeis não conseguem perceber. E se percebem em luta o tempo todo. Os inimigos estão prontos para atacar e eles ali, pronto pra resistir. No caso, o Dunga luta contra a opinião pública e a esquerdinha luta contra as elites. E lutam o tempo todo. E a esquerdinha resolveu abraçar o Dunga, pra lutar junto e tal. A gente não deve esquecer que o discurso político mais parecido com fanatismo religioso é o esquerdinha. A gente não deve esquecer porque no caso é bem importante pro alinhamento. Porque, né? Não tinha nada a ver o conteúdo. Então eu presumo que a forma atraiu. Então esse é o problema central. A dupla contaminação. Treinamento virou monastério. Jogadores da seleção viraram "os escolhidos". Ou pode ser uma contaminação só e eu que tô desdobrando.

Mas tem um outro ponto. Só que aí é tanto chute e tanta psicologia de boteco que eu até resolvi fazer parágrafo. Eu já falei um pouco disso aqui, na época da convocação. Que o Dunga não deixaria de ser quem ele é. E ele é um volante aplicado. Então eu penso que ele sempre acreditou nisso. Que aplicação e disciplina constróem um campeão. É complicado nadar nessa água. Porque o budismo ensinou. Se deixa frouxa, a corda não toca. Se estica demais, ela arrebenta. E eu fico pensando que ele tinha isso na cabeça. Que não existe genialidade que não seja superada pela árdua rotina de trabalho. E eu penso nele deitado no quarto, em 1994, na concentração. E acordando bem cedo pra treinar. E lendo minutos de sabedoria pra se inspirar. E vendo o Romário pular janela e voltar de madrugada e ficar procurando sombra na hora do treinamento. Eu já assisti um jogo do Romário, pelo Vasco, que ele jogou na sombra o tempo inteiro. Quando lançavam bola onde o sol tava batendo, ele nem ia. E ele era o capitão e o Brasil confiava nele e ele ergueu a taça. Mas a Copa é do Romário. O Romário é que entrou pra história. É do Romário que a gente lembra. É o nome do Romário que a gente grita. Eu acho que ele nunca conseguiu entender. E é difícil pra mim também navegar nessa água. Porque pode parecer que eu tô fazendo uma espécie de elogio ao Macunaíma. E que acredito em talento nato. E coisas assim. E não é isso. Eu entendi quando o moço falou que 99% é transpiração. E eu nunca vou saber se a disciplina é que mata o talento. Ou se a disciplina é o refúgio de quem não tem talento. É metafísica essa discussão. Eu sei que o Dunga acreditou mesmo. Que a mediocridade, desde que bem treinada, seria capaz. Então ele pegou jogadores medianos ou em má fase e disse pra eles "você pode". E eles acreditaram, pelos motivos já ditos aí em cima. Mas o caso é que me parece um acerto de contas pessoal. A feia seleção de 94, no fim das contas, só ganhou porque havia um gênio por lá. Você pode imaginar. O quanto o Dunga ama ver gol do Elano. Eu nem comemoro gol do Elano. As pessoas amam o Lúcio. O LÚCIO. Olha. Não dá. Eu nem reparo no Lúcio. Só vejo o Lúcio quando ele faz cagada. Talvez seja o jogador mais sem sal da história desse país. Não tem charme, não tem carisma. E acho que era essa a meta mesmo. Transformar todo mundo em Lúcio. O Juca disse no Linha de Passe que quando olha individualmente os jogadores, não sente carinho por nenhum. Não sente nada. O que de mais afetivo aconteceu com a gente foi Felipe Melo mesmo. E aí eu até tiro meu chapéu pra ele. Numa seleção sem personalidade, em que todos os indíviduos foram abrindo mão das suas características para formarem uma massa amorfa que eles chamam de "grupo", O Felipe Melo foi o único que escapou. Daí que os craques abriram mão mesmo de ser craque. Um atacante substituído no fim do jogo diz que foi melhor assim. Aprenda com o Tevéz, Luís Fabiano. Da próxima vez, saia bufando. Aprenda com o Ganso e se recuse a sair. E o Robinho é outro sintoma do elogio da mediocridade, se a gente for pensar. Tava na reserva do Manchester City e foi pro Santos. E o Santos detonou. Ele também detonou. Mas, né? Outros caras encheram nossos olhos. Dois gênios ascendendo. E o Dunga nem notou. Ou deliberadamente desviou o olhar e optou pelo gênio caído. Agora sim o Robinho está pronto, eu acho que ele pensa. Caiu do Olimpo. Virou mortal. Esse apego dele à mortalidade. Ele convenceu o grupo todo disso. Que eles eram mortais e que nada conseguiriam sem o "grupo". E o grupo aqui funcionando como o Deus durkheiminiano. Daí volto pro que eu já falei. Então é só isso, por enquanto, que eu tenho a dizer sobre a eliminação.

Eu gosto dessa imagem porque pra mim ela reflete. O abrir mão do talento para abraçar a garra. Como se fosse uma boa troca. A maneira que o Robinho achou de "entrar" com tudo no jogo. Quem ainda não viu. Vale a pena clicar e ampliar etc.

17 comentários:

  1. Como sempre, você traduziu tudo o que aconteceu. Tinha comentado aqui, que não conseguia torcer para esse futebol fundamentalista de Cristo. Que não consigo sequer ter pena das lágrimas desses homens. Esta foto, o dedo na cara do outro, num impacto primeiro mesmo, me transmite arrogância, o descontrole que resulta em agressividade contra o elemento que desafia a cola da unidade. E, numa consideração bem superficial, de quem está afastada da realidade diária do Brasil, não custa dizer que o "espírito" desse time me lembra muito o que sinto em relação à mentalidade brasileira contemporânea, do "Deus é brasileiro" levado ao extremo. Do ufanismo que me cansa ao extremo.
    E se você pensar, também, na defesa do time, que era quase impenetrável, que não deixava ninguém jogar direito, isso também me incomodava. Outros times estão jogando assim também, mas acho que é algo que jamais deveria ter contaminado o nosso futebol.
    Que bom que eles não levaram essa, que bom.

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  2. Abolutamente genial, Mary.
    PAOMAS pra ti! Clap clap clap!

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  3. Deus não tava lá. Dunga oferecia mesmo era pílulas de Augusto Cury.

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  4. Chegou a ver essa matéria? http://revistatrip.uol.com.br/revista/189/reportagens/o-pastor-do-hexa.html
    A copa mais insosa de todos os tempos, não me comoveu em nenhum momento

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  5. A sua análise está muito boa, Mary. Mas não consigo entender as pessoas que não conseguem torcer pela seleção por esses motivos, por não se identificarem com os jogadores. Porque, né. Danem-se os jogadores, danem-se o Dunga. O que importa são as pessoas que estão aqui no Brasil, assistindo e sofrendo. De certa forma, é por eles, por nós, que a gente torce. Na hora H, o que eu mais desejo é que o povo brasileiro possamos (atenção para a silepse!) encher a boca e gritar pelas ruas. Não acho que essa catarse faça mal a ninguém, muito ao contrário. Por isso torço e torcerei pela seleção SEMPRE, mesmo desgostando dos jogadores. Acaba falando mais alto essa abstrata noção da coletividade nacional, o desejo de ser feliz enquanto povo brasileiro.

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  6. Você é uma daquelas pessoas que veem além do óbvio. Concordo que a individualidade não deva ser reduzida a uma massa amorfa. Entretanto, quando se trata de trabalhar em equipe, a individualidade deve estar a favor do grupo e alguém tem que dar a direção. Acredito que é isso que o Dunga tentou mostrar e fazer. O outro extremo seria a seleção Argentina que tinha individualidade de sobra e liderança de menos. Para finalizar, devo dizer que a apropriação que você fez do Goffman e do Durkheim foi excelente. Esse post pode se desdobrar num belo artigo.

    Beijo,

    Janete.

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  7. Olha, uma aula esse seu post.

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  8. O Felipe Melo não teve que abrir mão de quem ele é porque ele sempre foi uma massa amorfa pronta e acabada.

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  9. Nossa, amei esse post. E fico com a opção de que "a disciplina é o refúgio de quem não tem talento". Temos exemplos de disciplina unida a talento, como o Pelé. A indisciplina pode até atrapalhar um grande jogador, mas não impede de brilhar. Maradonas, romários e etc. PRECISAVA de um cara desses. Uma banda pode tocar incrivelmente bem, mas PRECISA do astro. E esse time não tinha. Só com disciplina, garra, persistência dá pra ser mediano. E nós fomos medianos.

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  10. Na segunda coletiva o Dunga disse que futebol pra ele é "velocidade e técnica". Ou seja. Delícia de post. Bjk.

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  11. Eu podia escrever que "eu não concordo também com sua visão de 'direitinha' e da Globo", mas vou usar o espaço para dizer que apesar dos pesares o Dunga é o 4º melhor técnico do Brasil em termos de aproveitamento, perdendo apenas para Zagallo, Telê e Feola. Ganhou a Copa América, a Copa das Confederações, foi o 1 lugar das Eliminatórias e Medalha de Bronze nas Olimpíadas.

    É verdade: Perdeu a Copa do Mundo e também brigou com a imprensa.

    Mas, olhemos para as manifestações recebidas pelas seleções argentina e sul-africanas após as suas participações na Copa. O Dunga tem sim sua responsabilidade, mas até quando nós Brasileiros continuaremos sempre SÓ criticando, apontando, humilhando, desqualificando as pessoas, sem ver no trabalho delas algo de positivo.

    Fica meu comentário sem nenhuma pretensão de polemizar com os 190 milhões de brasileiros que têm opinião contrária.

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  12. 190 milhoes menos 2, pois eu concordo com o anonimo acima!!

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  13. Como é q eu não conhecia esse blog? Genial o texto.

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  14. Belo texto, mas acho que a Dunga deve ser dado o benefício de ter confiado extremamente em seu grupo, sem se importar em convocar e dar papel principal a jogadores como Robinho que além de não jogar o que ouço dizer que joga, nada mais é que uma figura de mídia que faz o que for necessário para ficar em destaque (vide camiseta para Escobar).

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